Entrevista ao jornalista Astier Basílio

The place of memory - 2013-2014 - oil on canvas - 72.8 X 98.4 in - O lugar da memória - 2013-2014 - óleo sobre tela -185 X 250 cm

3 de maio de 2011

Me recorda aquela epifania que você teve. Era que ano mesmo? Você tinha ido para qual país, ia descer em qual estação de trem e tinha ido desenvolver qual trabalho?
Deixa-me contar alguns fatos subjacentes que dão contexto a esta ocorrência. Tenho uma forte relação com a natureza. Minha infância no sertão da Paraíba em companhia do meu avô materno, em sua fazenda de gado e algodão, sedimentou uma realidade indelével que se tornou parâmetro de toda minha percepção das coisas. Aos 24 anos larguei tudo na Paraíba, carreira inclusive, para buscar esta experiência da infância indo viver na Chapada dos Guimarães, sertão do Mato Grosso, plantando e colhendo.  Esta aventura deu-me a consciência que não sou um homem do campo, apesar da relação profunda com as coisas da terra, sou na verdade um homem urbano e descobri indo viver em Berlim que, quanto mais cosmopolita for o ambiente melhor eu me sinto.
Pois bem, a experiência vivida no durante o trajeto de trem entre Copenhagen, capital da Dinamarca, e Brande onde se situa a Instituição Cultural Remisen-Brande que em 2005 convidou-me para um workshop de um mês em conjunto com artistas de quase todos os continentes, foi de ordem transcendente.
Penso Astier que a experiência é a matéria prima da arte, a vida é, pois o tema e a matéria da arte. Isto posto, fica fácil compreender que a arte não cumpre o papel de descrever a vida, seu propósito é mais amplo e mais profundo, qual seja formalizar em seu tempo o significado da vida, coletiva e individual, em um totem simbólico por meio da linguagem. O que confere, portanto dimensão ao artista é a sua atitude frente à vida, o artista domina a linguagem na exata medida que se torna consciente de si mesmo.

A minha experiência de quatro horas em um estado alterado de consciência, catalisado exclusivamente pela luz dourada e imutável do verão escandinavo derramada sobre a paisagem em movimento vista da janela do trem, foi um momento de profunda participação mística com a natureza.
Em outras palavras eu finalmente voltei a minha realidade subjacente. Isto foi possível pela experiência e os conhecimentos acumulados no durante o percurso de mais de quarenta anos de busca. Num único instante tudo se cristalizou, tudo fez sentido.

Esse teu mais recente trabalho vem como desenvolvimento de uma investigação, de uma linha de trabalho com óleo, fala um pouco desse percurso de pesquisa e de que maneira esta exposição representa um momento novo em tua trajetória?
O trabalho de pintura à óleo tem sido meu caminho já há vinte anos, e quanto mais nele aprofundo mais alegria sinto ao perceber que tudo é só começo. A pintura à óleo é um caminho infinito, o que vai na contramão da sentença dos que apressadamente decretam seu fim ou seu anacronismo. Esquecem que a linguagem é uma pedra preciosa que se revela mais translucida e mais brilhante, a cada corte preciso e assertivo da lapidação.
Quando conheci o óleo, de forma adequada, foi em Berlim em 1991. Lá em contato com os artistas locais e com o acesso aos grandes museus da Europa onde pude ver os mestres, tive finalmente a oportunidade de me capacitar para o trabalho com o óleo. No inicio a paisagem, que até então era pano de fundo na minha pintura, passa a ser protagonista.  O espaço da paisagem, amplo, fluido e silencioso mostrou- se o campo ideal para o entendimento do óleo. Foram três anos pintando paisagem até o retorno das figuras.
Quando vim para São Paulo no inicio de 2003, mobilizou-se em mim tudo o que eu dispunha como repertorio de uma forma muito concisa, era a necessidade premente de afirmação em mundo onde eu era um completo desconhecido. Foi o momento em que surgiram os bichos, a quem chamei de Deuses. O preciosismo, a força, e a originalidade destes animais causou espécie, e me deu uma identidade na cidade. Eu finalmente pude oferecer a estas criaturas que me acompanharam por toda vida o lugar que lhes era merecido.  Em agradecimento, acredito, elas permitiram que eu avançasse em um novo campo de investigação. Foi quando fui a Dinamarca e vivi a experiência narrada anteriormente.
Na volta da Dinamarca a paisagem voltou comigo, de inicio uma paisagem muito branca, muito clara, como se eu houvesse deixado a escuridão da caverna onde viviam os animais, e ficasse momentaneamente cego pelo excesso de claridade do mundo exterior.
Aos poucos a paisagem começa a ganhar cor e definição, e na busca da natureza desta paisagem uma forte necessidade de síntese foi se configurando.
A cor ganha, a cada pintura, em complexidade, enquanto a composição perde em descritiva no que tange a sua referencia paisagística.
Este processo vem se desenvolvendo há seis anos e hoje adentra um espaço que, ainda, é muito enigmático para mim. O que intuo disto tudo é que busco não mais uma explicação das coisas com a pintura, mas uma vivencia das coisas pela pintura.  A pintura que hoje faço e a arte que hoje me mobiliza, é aquela que propõe e propicia uma experiência direta, uma revelação não apenas racional, mas uma experiência viva, amorosa, total.
O que vou apresentar nesta mostra é o primeiro indicio deste pensamento/sentimento, que é minha busca hoje e que, de alguma forma, o foi sempre.

Fala um pouco do lugar em que você está, fala como é tua rotina de trabalho. Onde você mora mesmo – quero aludir ao fato de você caminhar até seu ateliê, acho que dá pra fazer uma matéria meio crônica.
Sou um apaixonado pelo meu trabalho, adoro acordar cedo para trabalhar, antes porem cuido do jardim, meu hobby, e dos cães, Lobinho que me acompanha desde a Paraíba e que hoje tem 19 anos e a Nina, que se somou a nossa vida quando conheci Simone, minha esposa hoje. Por volta das 8h00 já estou de saída para o ateliê, que do Sumaré onde vivemos até Pinheiros onde ele está situado, são quatro quilômetros que faço a pé todos os dias, ida e volta. É quando medito.
Meu ateliê é um sobrado antigo construído em 1922 por imigrantes portugueses, fica numa esquina bem movimentada que ainda guarda o espírito de bairro onde todos se conhecem. Tenho uma varanda na sala de pintura, nela tenho pendurado um comedouro para pássaros onde ponho alpiste e frutas para as rolinhas os sabiás e bem-te-vis, e semente de girassol para as maritacas, uma espécie de papagaio pequeno e muito barulhento. A algazarra deles enche meu ateliê de alegria, vez por outra algum pássaro entra e voa pelo ateliê, quando isto acontece sinto recebendo uma benção do Cosmos…

Leave a comment