Julia Pereira Lima
2014
“A pintura catalisa um estado”: é assim que Sergio Lucena descreve sua prática artística. Estar frente a uma de suas telas torna-se uma experiência, mexe com o corpo, com a mente. É possível ser transportado para os mais distintos lugares, estados de espírito, de consciência. A cor, a luz e o volume da tinta envolvem o espectador numa atmosfera subjetiva e transformadora, que oferece uma possibilidade de mergulhar e envolver-se em si e em uma nova percepção da realidade, na paisagem, no lugar. Enfrentar esse mergulho é paradoxal, pois ao mesmo tempo em que surgem lembranças e experiências passadas, também nos aponta novos e desconhecidos lugares.
É curioso olhar para a primeira fase da produção do artista. Seus trabalhos pictóricos figurativos – parte surrealistas, parte regionalistas, parte barrocos – traziam um universo fantástico e assombroso que o artista criava a partir de vivências da infância. Cada cena parecia saída de um livro de histórias mágicas, ilustrações de contos e mitos e personagens bizarros. Animais míticos e rebuscados substituíram as cenas teatrais, numa série denominada Deuses, composta de um panteão de figuras zoomorfas em tons de preto, cinza e branco, – e belas –construído a partir do imaginário do artista. A isso se seguiu uma ruptura brusca nessa trajetória, inexplicável a princípio, mas inevitável.
Como num movimento pendular, Lucena passa do rebuscamento barroco de seus Deuses a outro extremo, desenvolvendo uma pintura abstrata onde desconstruía sua prática prolixa, carregada de imagem. É nesse momento em que passa a apurar a fatura para elaborar paisagens e cenas marinhas completamente distintas do que se praticava antes, empregando uma outra palheta de cores, outra pincelada, e partindo para o exame de outro universo.
Notável, no entanto, é identificar o denominador à toda a produção anterior ainda mais presente e evidente na paisagem e no mar. Há uma luminosidade inerente à tela que unifica seu trabalho. Daí a explicação à reviravolta em sua estética – o que sempre interessou ao artista não eram primeiramente as formas e as figuras, mas sim a cor e a luz. Natural, assim, que com o esgotamento do expediente da forma e da narrativa viesse o abandono do barroco quase literal de seus seres mitológicos. A postura barroca, no entanto, transmutou-se para a postura barroca perante a tinta e a tela na criação do que podemos chamar de atmosferas. Suas paisagens, construídas laboriosamente em infinitas camadas de tinta e cor, são expressão da fascinação do artista pela matéria. Não é gratuito que Lucena se considere um alquimista, e não apenas na manipulação cotidiana de seus materiais usuais. O misticismo é também essencial ao entendimento integral de seu trabalho. Se por um lado o artista expressava seu interesse místico e mítico na figuração, a partir da quebra em sua linguagem, a abstração passou a carregar uma série de outros horizontes desse campo. Não é mais a figura, mas sim o corpo do espectador perante a tela e a experiência de fruição da arte que, em si, se tornam místicos. Suas paisagens são intensos e laboriosos experimentos de um cientista da arte, que busca criar por meio do exercício repetitivo de aplicar e retirar tinta uma possibilidade de experiência subjetiva.
Importante dizer, ainda, que a ideia e o lugar da infância continuam essenciais em sua produção, apenas em outro eixo. Sergio pinta como o menino no sertão da Paraíba que subia em uma pedra e olhava para o mundo. São infinitas pedras, infinitos horizontes, e a experiência infantil não é a única possível, e nem o artista pretende-se detentor desta exclusividade.
Essa ruptura culminou no que podemos chamar de atmosferas, estas as catalisadoras de um estado, o ápice deste desdobramento do artista como mote principal. Partindo de suas primeiras paisagens e marinhas, há uma série de trabalhos que evidenciam o processo de chegada ao que podemos chamar já de nova fase.