O artista muda a alma de casa.

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Mariza Bertoli
Visita ao novo ateliê do artista em 23 de janeiro de 2013

Quando Sergio Lucena me disse que estava em novo ateliê pensei comigo – é muito difícil mudar com todos os materiais, as referências, o acervo…e não se pode esquecer os fantasmas. É quase um ritual de passagem, uma espécie de transmigração. Lembrei do verso de Mario Quintana a propósito do amor: “Amar é mudar a alma de casa”. A casa do artista é o ateliê. E aquele ateliê no sobrado da rua Artur de Azevedo , em Pinheiros, estava tão batizado, com suas cidadelas simbólicas, os guardiões na porta e, no alto da escada, São Miguel mantinha o diabo dominado. O retrato do amigo Aldemir Martins instalado como em um altar, entre esculturas, com seu sorriso enigmático era mais que uma pintura, um anjo-da- guarda. Cada objeto parecia em seu lugar, mas a própria pintura, a fase atual do artista – que eu chamei O Vão estava a exigir a distância para o olhar. Era necessário afastar-se para ver, já que o momento do envolvimento em uma pintura dita abstrata é uma vivência tão forte, que é quase um engolimento. Foram sete anos, naquele espaço, povoado de presenças simbólicas, emergindo em estações imaginárias fantásticas, com desfiles fabulares de personagens encantadas e criaturas surpreendentes, imagens confessionais e premonitórias. O espaço tinha se tornado pequeno para a série Ænigma.

Painting N°19 - 2012 - oil on canvas - 59 X 59 in - Pintura N°19 - 2012 - óleo sobre tela - 180 X 180 cm

Faz um ano que visitei pela primeira vez o ateliê de Sergio Lucena, artista que venceu o Prêmio Mario Pedrosa 2011, da ABCA. Confirmei o que havia visto nas suas exposições – a força do artista consciente da tarefa inelutável de criar visualidades, trazer à luz a imagem do desejo, do indefinível. Enfrentar o “o mal – estar da cultura”, assumindo seus riscos e revelações.

Senti-me honrada como primeira visita “oficial” ao novo ateliê, representando a ABCA. O vestíbulo, como espaço de convite, oferece a possibilidade de exposição de algumas obras com iluminação adequada. Suponho que ali estarão expostas sempre as últimas obras. Cada uma das salas tem um pouco da história do artista, com obras de várias épocas. Sergio comentou que, pela primeira vez, tem uma reserva de acervo adequada, com os traineis e as condições exigíveis para armazenar mais de uma exposição. Finalmente, chegamos ao espaço de pintar, amplo e claro, com saída para um pequeno jardim. O coração do ateliê tem sempre uma obra “recém – nascida” à espera do olhar, para efetivamente ser batizada de arte.

Cópia de ateliê 1

Sergio criou um tipo de palco com luz zenital para pintar, com um painel para o desenho ao lado, dispôs os instrumentos e os materiais de trabalho meticulosamente, como objetos rituais. A pintura exposta no cavalete potencializa a luz do ambiente. O artista disse que sente uma inquietação, como se alguma imagem nova estivesse querendo vir à luz. Essa é a sensação que se tem ao olhar a obra que preside o espaço. As cores reduzidas, por camadas de pintura, como véus sobrepostos encobrem o vão, apenas pressentido. A pressão das trinchas na sobreposição das superfícies revela, na pele da obra, uma luminosidade nova, como se a cor fosse recém-nascida. Dessa mesma vertente uma série em branco e preto, intitulada Suite Nibiro (2011-2012), desenhos a carvão e pastel que vêm da memória das conversas do menino com o pai, dão a impressão de um diafragma em movimento. O Ænigma se coloca para além do anteparo. O artista, na sua maturidade, tem que empreender a viagem. Os planos luminosos são um convite ao mistério, como um chamado para caminhar em direção às origens, à zona primacial da imagem. Mas antes de chegar ao portal, ele percorreu uma longa estrada, levando pela mão o seu menino. Encantado com as lições do avô e consciente do seu lugar no mundo, primeiro ele constituiu seu ponto de vista. No sertão paraibano, sobre aquela pedra grande ele começou a ver o mundo com olhos novos, olhos de menino. O artista é sempre o seu menino.

Sergio Lucena nasceu em 1963, em João Pessoa e começou a trabalhar com o pai no comércio, aos onze anos. Atrás do balcão ele via suas personagens como se estivessem num teatro de bonecos e desenhava muito. Fantasiava a sua rotina, inspirado no teatro mambembe e no circo. Desde criança se encantava com as pinturas de Pieter Brueguel e as ilustrações de Gustave Dorè, para o Dom Quixote. Em 1980, aos dezessete anos conheceu o pintor Flavio Tavares e descobriu a pintura. Conta que foi dominando a técnica durante a execução do painel A Pedra do Reino em homenagem a Ariano Suassuna, que pintaram juntos em 1986. Foi para a Chapada dos Guimarães em busca de um sonho bucólico e retornou um pouco decepcionado, mas com o imaginário enriquecido. Fizeram juntos, ele e Flavio Tavares, os quatro painéis da série A Divina Comédia. Essa série, como as pinturas posteriores, são de uma figuração delirante, onde as alusões ao fabulário nordestino se mesclam com o que passaria a ser a marca do artista – as pinturas narrativas, cuja força simbólica concentra-se nas máscaras, e nas metamorfoses, que são as primeiras versões dos Deuses, que viriam à luz em 2003. O artista conta que quanto mais perseguia a luz, mais as pinturas se tornavam noturnas. Os sanguíneos e os terras, quentes que eram, foram esfriando em cinzas e verdes soturnos. As figuras ambientadas em espaços escuros, ganhavam plasticidade e a pintura como exercício expressivo ia superando a fabulação (1989-1991). A simbologia do artista se adensou, criando um acervo para o que viria.

blogParaíso, série Divina Comédia, Sérgio Lucena e Flávio Tavares

A estada em Berlim, com bolsa de intercâmbio com artistas alemães, em 1992 – 1993 foi, segundo o artista, um marco pela “descoberta” da técnica da pintura a óleo, em contato com os mestres nos museus e com seus contemporâneos. Essa vivência abriu-lhe perspectivas de uma expressividade fundada na cor pura, na luz. Ao mesmo tempo, surgiram as imagens que simbolizam a decisão de assumir a vida artística a qualquer risco. Muitas obras expostas contam como a Lua, como regime de imagem, envolveu o artista. A nave (1995) é a imagem da arca que sobrenada, o lugar de onde não se pode sair – a certeza da vida artística. É um símbolo denso do arcanum, pleno de segredos. Nas palavras do artista : Ali, um imenso navio cor de chumbo, numa noite muito clara há de ter trazido as minhas figuras, já que desde então não mais deixaram de frequentar os meus quadros.

 

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Quando Sergio Lucena voltou de Berlim (1993), sentiu que sua nova pintura, a paisagem, não era aceita. Havia criado a “marca” de uma figuração próxima do fabulário popular e era o que se exigia dele. Havia decidido que precisava continuar e continuou. Voltou a trabalhar no comércio e pintar a noite, passaram-se sete anos, até que Gabriel Bechara convidou-o para uma grande exposição no Núcleo de Arte Contemporânea de João Pessoa (1997) e, depois, no Centro Cultural São Francisco (1999). Vieram outras mostras em diversas cidades, no Brasil e lá fora como a realizada com curadoria do José Neistein em 2001 na cidade de Washington DC.

Em 2003, estabelece ateliê em São Paulo, e se relaciona com artistas e pessoas ligadas à arte. Encontra Rubens Matuck com quem mantém um diálogo instigante. Convive com Aldemir Martins, que considera seu protetor. Foram tempos difíceis, quando Os Deuses passaram a se apresentar um a um. O artista os tirou da memória arcaica (arceo) e os vestiu com a pele cerimonial, com a qual se apresentariam ao público. São híbridos, animais quiméricos, com olhos humanos, que nos espreitam, cuja pele elaborada com virtuosismo gráfico quase bizantino, despreza o volume para insistir na dança da linha. Esses 45 habitantes do mundo simbólico do artista, agora revelados, o ajudaram a atravessar os portais de uma liberdade inusitada. Vão se tornando etéreos, a iluminação ofuscante os integra em uma nova paisagem, como se fossem caminhos de volta ao mistério. Quando A Vaca Sagrada, com suas cores-madrugada se mostra, a luz torna-se cada vez mais intensa, com paisagens com fogo e com olhos d´água borbulhantes que se tornam árvores translúcidas. Deuses do Céu – Árvore-Pai e Deuses do Céu – Árvore – Mãe (2007).

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O Mar chega para aplacar a turbulência dessa plástica. Uma síntese entre céu e mar onde a linha do horizonte detém a luminosidade misteriosa. É quando o artista sente que tem o pleno domínio da pintura. Sergio comenta: Voltar e trazer a luz o que antes habitava as profundezas tornou-se primeiro um gosto, de tanto ir gostando, tomei gosto de um jeito que me vi feliz. Quando fala do ofício do mergulhador esta falando da gênese da obra de arte e do nível mítico. As coisas trazidas logo tomam forma clara no mundo da luz, se juntam a outras trazidas antes e, de alguma forma que ninguém entende, duas coisas acontecem. Uma é que trazem notícia do que existe lá no fundo, outra é que tal notícia lá do fundo fala do que existe lá no alto.

Day 2008 - oil on canvas - 47.3 X 63 in -Dia 2008 - óleo sobre tela - 120 X 160 cm -

Com o Ænigma, o artista descobre o espaço onde mora a pintura. Entre o objeto e o observador, a pintura é uma das peles com a qual a arte se veste em ocasiões cerimoniais para celebrar o Túnel, o Foco ou o Olho de Luz, enfim o Vão.

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